A cidade vive lá em baixo, tu estás na tua montanha de onde não seria estranho supores que todos haviam desaparecido, forçando-te a acreditar na sua espontânea emigração para um planeta distante. Impossível é discernir se o movimento que não te chega aos olhos se deve à providencial miopia proverbial ou do factual – fictício, forçado, fútil – desaparecimento daqueles que habitam os níveis medianos, médios, moderados da vida quotidiana para onde tu, assim que apagado o cigarro, te dirigirás e onde, sabes, após cinco minutos te sentirás tão integrado e confortável, mecanicamente funcional, que não desejarás nada mais que deixar de fumar, abstendo-te consciente e artificialmente do trauma contemplativo de voltar a olhar para baixo, sentires-te tu próprio, digladiares-te com a dilacerante experiência de voltar a deixar lá em cima o único pedaço de ti que ainda te faz sentir alguma coisa, ainda que seja apenas desprezo. Aqui em cima dispões de todas as alternativas, de nenhuma das soluções. Mas das alternativas, bem, que alternativas. Atiras o cigarro parapeito fora, transgredindo séculos de ancestral conhecimento e endoutrinamento ecológicos e observas a parábola sobre si revolucionária, a alternância dos pequenos círculos vermelho e branco, vermelho, branco do cigarro que deixou de ser, porque meio fumado e porque voa. É-te impossível deixar de imaginar outro corpo em queda livre, o observador observado, apoteose reversa, e de questionar se também este perderia a sua identidade durante o voo ou se apenas no final. Pergunta pertinente, de uma época mais civilizada. Mas, enfim, são horas de descer.
Despedes-te dos teus colegas – jamais os tratarias por amigos, por razões que se tornarão óbvias – e enveredas pelo fácil e familiar caminho para casa, torpor febril de auto-hipnose induzida pela quotidianidade de tudo o que, desta ou de qualquer outra forma te rodeia, olhas para o chão, algo fisicamente mais fácil e surpreendentemente mais surpreendente que olhar em frente, para as pessoas que passam, ou para cima, para os edifícios que ficam, as duas escolhas esgotadas pela experiência de deslocações pendulares cuja amplitude é demasiado grande para serem tema de discussão pelos gestores dos transportes públicos mas demasiado pequena para ser tópico de dissertações sobre planeamento urbano. Efetuas um breve varrimento visual da composição do metro, direita para a esquerda, dorme, de pé – olhar vazio, lê, ouve música, ouve música, redes sociais, repreende filho, repreendido pela mãe, par de olhos azuis com orla negra, redes sociais, olha para o exterior negro. Esquerda para a direita, olha para o exterior negro, redes sociais, par de olhos azuis com orla negra, criança amuada. Direita para esquerda, par de olhos azuis com orla negra. Um par de olhos azuis com orla negra, instrumento único da crueldade humana capaz da somatória da combinatória da máxima expressividade com a máxima vacuidade, no paradoxo facial de quem desconhece o aparelho de tortura que a identifica como indivíduo do mundo, uns simples olhos azuis com orla negra.